segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Amor próprio

Estava em pé, a fumar em frente à janela e resoluta, disse:
«Gosto dele, ainda, muito, mas gosto muito mais de mim.»
Também acho, Tita.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Palavras (inescrutável?)

«Chamo-Te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.

E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.»

É Sophia, claro, e desta vez dispensa banda sonora.

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Sol

O sol voltou, e parece-me que, só por isso, tudo tem tendência a melhorar!

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

O meu planeta és tu...

Esta tarde, ele veio. Apareceu a correr, trazendo o frio da rua no casaco de chuva.
Esta tarde, veio, e tudo se passou como sempre se passa. Um beijo no hall de entrada, rápido, apressado, chuvoso ainda. O mesmo caminho rápido até ao quarto, a mesma urgência. A mesma cama pequenina e estreita, o mesmo edredão de ovelhinhas suaves sobre um fundo azul, o colchão já mole, o mesmo porquinho de peluche cor-de-rosa. Os mesmos beijos náufragos urgentes, o mesmo cair da roupa sobre o chão, depressa, o mesmo cair dos corpos sobre a cama.
Esta tarde, depois de lhe teres pedido muito, muito, ele veio, veio e deitou-se a teu lado, já despido, já tu despida, na cama do edredão azul de ovelhas estampadas e dançaram os dois ao som da mesma música de sempre, que é afinal a vossa.
Esta tarde veio, e ainda agora, que já foi, não consegues dizer se esteve contigo, em ti, por ti ou através de ti.
Esta tarde choraste, depois de ele partir, zangado não sabes bem porquê. Choraste, porque querias não talvez mais, mas diferente, choraste a alma aos bocadinhos sobre o mesmo edredão azul, choraste a vida que vão levando, choraste-o a ele e, mais ainda, choraste-te a ti.

Esta noite saíste, a mesma raiva em pontadas debaixo do peito, debaixo do top preto, debaixo do coração, a cabeça nele e o corpo dançando e a boca bebendo.
Esta noite saíste, e se te tocaram ou se te beijaram não sabes dizer, mas desta vez garantes que passaram por ti, através de ti, que contigo só ele está.

E no fim da noite, voltaste a chorar.
Sabes que amanhã lhe telefonas, que ele te atende, que falam os dois, que depois de pedir, ele volta à tarde, o mesmo casaco de chuva frio.
Sabes, mas o que querias saber é que raio de dor é o amor.

Banda sonora: Fuck it, Eamon

sábado, fevereiro 19, 2005

Marta

É uma rua grande e movimentada. Uma estrada como as outras. Alcatrão. Dois semáforos, um de cada lado. E uma pequena ilha a meio, um bocadinho de terra mal amanhado, com três agapantos velhos, já a mostrar as sementes. É uma estrada no meio de uma cidade, barulhenta, viva. É uma estrada… e tu não consegues atravessá-la. E o mais que sentes são as pernas, as pernas, mas coladas ao chão. E não andam, não avançam por muito que te esforces ou faças das tripas (ou das pernas!?) coração. É uma estrada cinzenta, e embora o semáforo vá caindo do verde ao encarnado, uma e outra vez, estás colada ao chão e não consegues, mas não consegues mesmo, ir. E bem te esforças, de joelhos no chão, e já não sabes como e quando caíste. Usas os cotovelos, avanças… Avanças? Três passos de cotovelo, e o semáforo outra vez verde e tu sem conseguir andar a pensar não presto para nada, mesmo. E as pessoas a passar, e agora é raiva, raiva em ondas rápidas a passar-te pela cara como um mar picado. Porquê? Porque é que ninguém me ajuda, pensas cada vez mais aflita, a tentar arrastar-te sobre os cotovelos. E aparece alguém, e pensas que finalmente te vai ajudar, mas parece que és parva e não conheces esta história há tantos anos, os outros nunca te ajudam, devem querer sempre alguma coisa, embora ainda não saibas o que este quer. Uma estrada, e lá se põe ele do outro lado mesmo, do outro lado da estrada, depois do primeiro semáforo, do separador central com os agapantos e depois ainda do semáforo do outro lado, já no passeio para onde queres ir, a dizer «Anda, anda!». E tu bem tentas, mas é claro que também não vales nada e não consegues e ele, em vez de vez de te pegar com força, puxar-te (nem que fosse de joelhos!), nada, nada… e tu cada vez mais desesperada, mais a pensar que não vales nada, nem um semáforo, Marta, nem um semáforo consegues atravessar, e ele a mesma coisa, nada de te puxar e sempre a chamar-te e tu cada vez a odiá-lo mais, e mais…
E talvez não saibas, Marta, mas recrias a história da tua vida neste sonho estranho, de que te desprendes esgotada e triste depois de ouvires «I still miss you» a seguir a um blá lá lá estranho, e acordares ainda mais irritada por causa da estúpida música que a rádio estava a passar hoje logo quando o despertador tocou.


Banda Sonora: Águas de Março, Tom Jobim

Avô... (Inestimável)

Lembro-me de ti assim... Camisa de xadrez castanha, quadrados mais ou menos grandes de um castanho mais claro... Deitado, de boina na mão, no fim de um braço paralelo ao corpo, a dormir na areia escura de um terreno arenoso. Um baloiço ao fundo, dois paus como mastros (nunca nos custou imaginar), uma tábua pequena a fazer de barco, cordas para subir mais alto... Lembro-me de ti e não ainda hoje não sei se enquanto dormias sonhavas...
Lembro-me de ti sentado naquele sofá tijolo, roendo jornais, palavras cruzadas e contas.... Seria deles que bebias as histórias que nos contavas? Seriam contas as que fazias as da vida - a imitação imperfeita, em números? Ou contarias antes o tempo que corre como a água de um ribeiro, onde caçamos enguias?
Lembro-me de ti sob uma manta azul, a passear em histórias pela tua juventude, entre macacos e boxeurs e netos que afinal também são condutores de comboio, forasteiros e saltimbancos...
E, do quarto do poster de girassol, ou do alto ravina da casa que dava sobre a praia, nasceu uma parte de mim que é hoje um pássaro.
Lembro-me de ti assim, e agora sento-me, uma folha vazia à minha frente e tanto e mais para dizer-te acerca de mim, acerca de ti, acerca da vida e de como dói, de como dói a tua (ainda quase) ausência. De como gostava de te ter dito, tantas vezes, quanto gosto de ti, de como tantas vezes disse o que talvez não quisesse, numa impaciência própria de quem ainda não aprendeu a voar direito e herdou o pássaro que há em ti também.
Lembro-me de ti, avô, mas agora és um velho velhinho numa cama de hospital, deitado magro num lençol branco à espera da conta final, olhar perdido e vago, fito num ponto vazio de uma outra realidade, que não compreendemos ou não alcançamos... Lembro-me de ti, e sinto-me estilhaçar, enquanto sorrio devagar para ti...
Sabes, avô, vais morrer... Vais morrer um dia destes, de um desses ataques de tosse, ou de tristeza, ou de cansaço da vida na sua álgebra pesada, e vamos sentir a tua falta, e vamos lembrar-nos de ti, algures entre a areia da Nazaré ou o pinhal das Paredes ou algures em nós, e no que de ti nos ficou.
Disseram-me um dia que os que morrem só morrem quando deixamos de os recordar, quando se volatilizam da química do nosso coração ou da nossa cabeça... Parece panaceia barata, profilaxia baixa, consolo reles... Parece e é, mas é também porventura o melhor que temos. E bem, pensado, avô, a única parte de ti que vai morrer é o velhinho velho e magro sobre o lençol branco da cama de hospital, esse que também amámos pela memória do que foste enquanto o pássaro que nos deste voou, também, vivo, em ti.


Banda sonora: Adagio, Albinoni