segunda-feira, maio 23, 2005

Padrão

Todos os dias atravessa, o mesmo automóvel importado de reconhecido conforto e estabilidade, a mesma faixa de alcatrão preto, os mesmos condutores zarpando de uma para outra margem, por cima do mesmo rio entre azul e cinzento, as mesmas gaivotas gritando, a mesma ponte.
Todos os dias se senta na mesma mesa do mesmo café, o mesmo jornal, bica e bolo de arroz e passa os olhos pelas notícias estafadas do dia já cansado, controlando o caminhar dos ponteiros no relógio preto de pele.
Todos os dias, rigorosamente às nove e vinte, entra pela porta, cumprimenta a funcionária, veste a bata e se senta à secretária.
Todos os dias vê as mesmas caras, os mesmos males, as mesmas dores em gente pequena ou grande (alma ou estatura?), e escreve as mesmas letras rigorosamente contornadas nas mesmas folhas logotipadas do mesmo caderno branco, a mesma rebuscada assinatura por cima do mesmo autocolante cor-de-rosa com o seu nome.
Ao almoço, invariavelmente numa mesa da direita da parte de cima do restaurante da esquina, o mesmo senhor doutor ao atravessar a porta, o mesmo apressado e transpirado empregado, circulando ofegante por entre as mesas, o mesmo bacalhau cozido com todos todas as Terças.
Às Quintas-feiras, há reunião clínica e já apresentou um trabalho, mas só uma vez.
Todos os dias regressa pela mesma ponte e se senta no mesmo sofá de pele gasta, remastigando as notícias cansadas do mundo esgotado e o jantar deixado pela empregada, após o que se senta, direito, à secretária, debruçado sobre livros grossos com desenhos coloridos de partes da parte de dentro das pessoas.Todas as noites estuda demais, se deixa bocejar sobre as encadernações que lê, todas as manhãs amanhecidas na margem sul lhe parecem sonolentas e gastas .
Aos Sábados, visita a mãe nos Olivais. Leva-lhe às vezes flores e fica com ela um pedaço de tempo, até que o silêncio se torne insuportável e, evocando invariavelmente o trânsito e a necessidade de regressar, a deixa.
Aos Domingos, passeia até Sintra. E quando, findo o passeio, antecipado o regresso ao carrocel quotidiano na madrugada seguinte, se queda em sossego, costuma escrever.
Escreve, sim, a parte de dentro das pessoas... Sobre o que gostaria de ter sido, sobre o que o mundo pode ser ou não é.
Escreve histórias de amor.


Banda Sonora: «Deixa-me Rir», Jorge Palma

«Do Amor e de Outros Demónios»

Amar-te-ei. Hoje, ao fim da noite ou ao princípio do dia, ao fim de mim ou ao princípio de ti, entre a última luz negra do céu estrelado, a alvura da aurora e o surgir do sol num céu cinzento sem nuvens.
Amar-te-ei. Mas pouco. Apenas o suficiente para que esteja em ti uma parte limitada de mim, apenas e só por cima de ti ou por baixo de ti, apenas sobre ou debaixo, entre, nunca dentro.
Amar-te-ei em fúria etílica ao nascer do dia, ao rasgar do sol, ao fugir das estrelas, amar-te-ei de novo enquanto durmo a teu lado e me vês dormir, calculando o tempo que te resta ainda comigo dormindo.
Amar-te-ei até que entardeça, até que me chame a minha vida e a razão, até que me farte de ti, dos despojos da tua roupa no chão e do sabor dos teus beijos e me apeteça, enfim, gritar ou escapar pelo quadrado da tua janela em direcção ao céu azul de fim de tarde...


Banda Sonora: Melancholic Ballad (for the left lovers), Fingertips

segunda-feira, maio 16, 2005

«Quem tem um amor tão grande/ Só teme ter de partir...»

Amaste-a desde o primeiro momento. Serena, altiva, inabalável e tão simultaneamente protectora no seu ar grave, tão acolhedora para além do seu coração de pedra.
Hoje, enquanto te preparas, porventura mais o espírito que o corpo, vais repetindo a ti próprio que podes sempre voltar, que vai estar sempre à tua espera, que há qualquer coisa nela que nunca te vai deixar.
E, enquanto apertas o nó da gravata que já usaste tantas vezes, parece-te particularmente escura, mas compões o casaco e olhas-te ao espelho, a navegar em angústias pelo rio de ti mesmo.
Sobes a rua, a mesma rua de sempre, sentas-te e esperas, à espera dela, à espera de música, à espera de encontrar qualquer coisa em ti que lave e sare a dor de partir...
Bate o relógio, a música começa, recordas tudo. As latas nos pés, a água do rio, já tu baptizando, amores em chamas e ruas em fitas, cartolas e fados, Coimbra, cidade. Devagar, choras e queimas, sabendo já como é o que nunca mais será. E ardes ainda mais as fitas que tens em ti, sabendo que, quando a música acabar, quando a última guitarra cessar de ranger, quando por fim as vozes calarem o fado, quando esta queima arder, o que restará de Coimbra em ti serão cinzas, ou nada mais que saudade.


Banda Sonora: Coimbra, por Carlos Paredes