quarta-feira, novembro 28, 2007

Dos graus do transferidor ou os psicólogos não choram

Devem os psicólogos que trabalham com crianças com poucos recursos (económicos e, sobretudo, afectivos) meter o mais cedo possível na cabeça que não é sua função, quase arriscaria dizer, de todo, suprir a carência esses recursos, pelo menos de um modo directo.Idealmente, dotar-se-iam as supra citadas crianças de competências que lhes permitissem obter esses recursos. Em teoria, muito bonito. Na prática, absolutamente difícil. E isto tudo pelo facto de alguns dos «meus» meninos não receberem presentes no Natal. Presentes, agora sim, definitivamente de todo. Nem um desenho, um chupa, um bolo e, às vezes, estou em crer, nem um mimo.

Ao primeiro embate, apetece-nos virar Pai Natal, emigrar para a Lapónia e, com a ajuda dos duendes e do Rodolfo, distribuir presentinhos às «nossas» crianças. A minha solução deste ano foi esmerada: construir presentes em tecido, atribuindo a cada um dos bonecos que faremos em conjunto o nome de alguma coisa, que não um objecto, desejada pela criança. Começamos para a semana, mas por se tratar de uma tarefa razoavelmente complexa, apresentei-a esta semana, para «irem pensando». É difícil explicar a uma criança pequena o objectivo do «jogo», porque as suas primeiras ideias, salvo (difíceis) excepções são construir em tecido uma playstation de qualquer tipo (2, 3 ou portátil), um telemóvel, uma Polly ou qualquer coisa aparentada. Portanto, comecei sempre por perguntar aos «meus» meninos o que queriam no Natal. A I. respondeu-me «Quero uma coisa que não é brinquedo, nem roupas, nem nada. Quero ver o meu tio que morreu, só uma vez.»

Devolvi-lhe umas ideias mais ou menos consoladoras (ou, melhor dizendo, menos desconsoladas) acerca da morte que tenho alinhavado para me coser a mim própria, enquanto pensava, direitinho e com esta clareza e me saíam os alinhavos da boca, «Quero uma coisa que não é sapatos, nem relógios, nem livros, nem roupas, nem presentes embrulhados em papel vegetal colorido, que sempre sonhei com presentes embrulhados em papel vegetal às cores, quero uma coisa que é ver o meu pai só uma vez.» Não me parece que a I. tenha sentido a minha angústia, mas, depois de ouvido o alinhavo, perguntou-me «Nunca mais o posso ver, pois não? Era a pessoa que eu mais amava no mundo...». Eu respondi-lhe «Talvez o teu boneco possa chamar-se força para aguentar as saudades», a pensar num para mim, ela beijou-me e saíu a chorar.

Chorei também, umas lágrimas envergonhadas, fodidas, doridas e sem espaço na bochecha para caírem, porque a I. chama sempre a L., que leva um minuto a chegar e um minuto depois ali estou eu, lágrimas limpas, coração apertado, cara salgada e alegre, os psicólogos não choram.

terça-feira, novembro 27, 2007

Insultos (IV)

E insulta-se desde já quem quer que ache esta série agressiva, ressentida ou frustrada.

Insultos (III)

Quero ainda insultar quem aumentou 15€ num único ano civil o preço dos Technomarine. Não que seja assim tão revelante no rombo final, mas bolas, é um abuso meterem assim a mão no bolso da fashion victim.

Insultos (II)

Hora de almoço em casa da minha avó faz-me isto: ler revistas de celebridades. Queria aqui insultar publicamente a mulher do David Fonseca. (Ah, pensavam que era a Diana Chaves por não ter celulite? Pfff...) Porque me parece demasiada sorte ter um homem taciturno, vagamente deprimidinho, que usa All Star, toca guitarra, é giro, interessantíssimo e... organizado, muito psicologicamente organizado, que é coisa que homens que cumprem os requisitos anteriores quase nunca são. Portanto, sôdona little angel S., a menina merece esse cognome pindérico, e merece bem a celulite nas pernas que desejo ardentemente que tenha e o insulto público, que não há pachorra para pessoas com muita sorte! :)

quinta-feira, novembro 22, 2007

Da Temporalidade do Natal (III)

Ao setting anterior, junta-se o Miguel.
-Miguel, quando é o Natal?
- Ah, falta muito.»
Acrescenta a Beatriz:
- Faltam trinta dias.
- Porra, é muito.

Da Temporalidade do Natal (II)

- Lara, Beatriz, quando é que é o Natal?
- Ah, a minha mãe disse que era daqui a pouquinho tempo.
- A minha mãe disse que falta muito.
- Pouquinho!
- Muito!
- Ah, faltam dez dias.
Contam até dez, em coro, exibindo a recém adquirida competência de «contar». Eu digo que falta «mais dias». Contam até vinte. E prosseguem: vinte e um, vinte e dois, (...), vinte e oito, vinte e nove, vinte e dez.

Da Temporalidade do Natal (I)

Sala dos 5, mesa de desenho.
-Oh, Inês, sabias que o Natal é amanhã?

domingo, novembro 18, 2007

Insultos (I)

E queria aqui insultar publicamente os senhores que inventaram o Mars Delight. Não se fazia uma coisa tão demoníaca e capaz de controlar omnipotentemente os nossos pensamentos: se comemos, pensamos «merda, comi, ai as minhas pernas»; se não comemos, pensamos em comer.

domingo, novembro 11, 2007

Golegã

Vem, por favor, buscar-me num cavalo preto ou branco, porque de outra cor não teria, o cavalo, a dignidade de cor necessária ao momento, vem buscar-me e debruça-te sobre mim e sobre o chão, perdendo, por um instante, a compostura que tens sempre em cima da sela, apenas um instante suficiente para me enlaçares, apanhares do chão e içares para cima do nosso cavalo.
Vem, por favor, buscar-me e senta-me não atrás de ti, mas, definitivamente, à tua frente, à frente na sela, para que, necessariamente, para nos conduzires, tenhas de juntar a tua cabeça à minha e os teus braços ao meu flanco, abraçando-me para chegar às rédeas, colando a tua cabeça à minha enquanto procuras ver o nosso caminho para nos ires conduzindo.
Aproveita, que estará o meu coração encostado às tuas costas, o meu corpo cingido pelos teus braços e o meu ouvido encostado à tua boca e promete-me, promete-me, mas sem perderes nunca a posição correcta do pé no estribo, a altivez das costas direitas mas não rígidas, a compostura do boné, promete-me, que me hás de amar para sempre, por muito que para sempre seja muito tempo, mas promete-me que para nós queres para sempre, enquanto o nosso cavalo branco ou preto continua a caminhar a passo, guiado pelas tuas rédeas, passo atrás de passo, toc, toc, por cima do alcatrão preto, pelo meio do nevoeiro de princípio de dia e fim de madrugada, a luz nascendo na vila da Golegã, toc, toc, passo, passo, para sempre, para sempre.

Ps: Para provar taxativamente à L. que nem sempre escrevo na primeira pessoa a referir-me a mim. :)

terça-feira, novembro 06, 2007

Acho a testosterona uma hormona um bocado estúpida

Porque já não suporto, por um lado, ver novecentos meninos de escola primária e secundária aos pontapés, murros e afins uns aos outros, vamos ver quem é mais macho e manda na capoeira; por outro, os meninos que brincam com meninas, demasiado femininos e mariquinhas também não me parecem bem.

sábado, novembro 03, 2007

Os homens são todos iguais (II)

Num destes dias, ao sair da minha sala, lançava-me a Daniela um dos seus sorrisos mais irresistíveis. Aproximei-me para falar com ela, pedir um beijinho, ver as roupas novas e ouvir qualquer coisa que fez a mãe, o costume.
Apareceu o Tomás, e disse-me a Daniela:
«O Tomás é meu namorado, sabias, Inês?»
O Tomás sorri, e eu pergunto aos dois:
«Porque é que vocês são namorados?»
O Tomás volta a sorrir, encolhe os ombros e diz:
«Eu não sei.»
E a Daniela, com a clarividência precoce das mulheres que, estou em crer, se inicia aos cinco, esclarece:
«É que o Tomás já me deu um beijinho na boca, mas também deu à Beatriz António e à Margarita.»
E o Tomás, iluminado então pela clarividência da Daniela, acrescenta:
«Sim, eu namorava com as três: com a Daniela, com a Beatriz António e com a Margarita. A Margarita chateou-se comigo e agora só tenho duas namoradas. Mas acho que no próximo mês já consigo arranjar outra.»

Os homens são todos iguais (I)

No príncipio deste ano lectivo, quis o meu ego securizar-te e apaziguar-se com a certeza de que as crianças do sítio onde trabalho não teriam esquecido o meu nome durante as férias.

Na sala dos 3, está-se no exercício da função simbólica em plena forma. A possibilidade de representar algo por alguma coisa permite à criança brincar, desenhar e fingir. Neste universo do faz-de-conta, um adulto disponível para comer e beber coisas imaginárias servidas em chávenas e pratos de plástico colorido vale muito, e era nessa orgia alimentar que eu estava quando perguntei ao Machado:
«Como é que eu me chamo?»
Confuso, respondeu-me:
«Teresa»
E eu neguei, rejeitando o «café», com que a dizer só bebo o «café» da chávena de plástico quando souberes o meu nome.
«Catarina»
«Não»
Um sorriso traquina, traquina.
«Chamas-te menina

E bebi o «café», a rir-me.

quinta-feira, novembro 01, 2007

Parabéns, Margarida


Quando conheci a Margarida, ela trazia um fio como se usava na altura, que condizia com uns brincos impecáveis. Não sabíamos bem se queríamos a Margarida como caloira, porque, bolas, as caloiras dão trabalho. Nessa altura, a Margarida tinha um telemóvel cor de laranja, cor a que chamávamos império,acho que devíamos ser parvas, psicologia é um império, um império. Foi uma boa escolha termos ficado com a Margarida, mas não por causa do telemóvel.
Cozinhei à Margarida pipocas, sopas e caldeiradas de lulas, embora ela não soubesse varrer, comprar dois tomates maduros e não quisesse usar cornos ou trincar nabos. Uma vez fomos ao estádio e a Margarida veio-se embora a meio do jogo para não sujar a saia na relva, porque estávamos sentados no chão.
Com o tempo, a Margarida foi-se-me revelando o que é: uma caloira sempre disposta a ajudar os seus amigos, sempre de sorriso nos lábios. Uma rapariga impecável. Impecável no cabelo, e não sei o que usa ela, ou melhor, sei, é shampoo anti-oleosidade da farmácia, mas não sei como lhe fica sempre tão impecável o cabelo. Impecável na saia, no mocassin, na écharpe e nos brincos. Impecável nos bordados, nos trabalhos manuais, nas pinturas, nas agendas e livrinhos de receitas. Impecável a pintar manicures francesas nos pés de madrinhas ou a acompanhá-las a cabeleireiros. Impecável a encontrar as pechinchas da comida, como as bolachas mais deliciosas e baratas, 40 cêntimos este pacote, madrinha. Impecável na intenção de tornar os seus amigos «direitos que nem um fuso». Sobretudo, impecável a dar mimos, impecável de coração. E é mesmo por isso, e por nenhuma das perfeições anteriores, que eu gosto da Margarida: é impecável de coração.