quarta-feira, outubro 31, 2007

Dia de todos os mortos, dia dos meus

Nesta merda de edifício estará deitado o meu pai, numa cama pequena e articulada no primeiro andar. Terá vestida uma t-shirt antiga e publicitária, vagamente puída, que desde há já uns anos usa para andar por casa ou para dormir, e que será, depois de ele morrer, a única coisa dele que eu vou querer guardar, sem paciência para discutir divisões dos bens dos mortos. No quarto do meu pai estará a minha avó, mais magra do que sempre a conheci, sempre impecavelmente penteada e forte, oferecendo-lhe comida. O meu pai estará magro, aflitivamente magro e amarelo, com todos os ossos a saltarem-lhe pela pele, como querendo sair da carne, e a boca rebentada da doença, muito ferida. Estará também, no mesmo quarto, a mulher dele, sempre bem vestida e de bom ar, mas desta vez, com um bom ar triste, magoado e olheirento. Ela levá-lo-á sempre à casa de banho, porque o meu pai nunca admitirá que está a morrer e não pode andar, o que a fará pegar-lhe ao colo, às cavalitas e arrastar-se com ele até à casa de banho, como só o amor pode.

Neste corredor de clínica, falaremos baixinho do estado clínico do pai, nunca à frente dele, quando suspeito que se ouve muito bem lá dentro e quando sei que o pai sabe tão bem como nós que vai morrer, brevemente.

Nesta mesa de cabeceira estará o meu presente de último Natal ao meu pai, a única pessoa da família sem ironias para camisolas que não ele vai vestir, um urso retribuído de há muitos anos, quando eu era pequena e ele me deu um urso porque estava doente com pneumonia, porque lhe devia um urso, ainda que o meu fosse mais pequeno. Neste quarto ao lado, estarei sentada em frente a um ecrã e a um jogo que me distrai muito, e que não voltarei a jogar tão compulsivamente como nessa fase, a precisar de fugas em frente e realidades paralelas. Estarei sentada com o meu irmão e tocará o telemóvel do Luís, que, naturalmente, eu terei deixado o meu em qualquer lado com medo das más notícias. O Luís olhará para mim com uma cara difícil, eu começarei a perceber a gravidade, mas negarei e direi, ficamos mais um bocado, vamos embora, Inês, ficamos, estou a jogar com o Vasco, Inês, vamos embora.

Neste carro, verei o meu irmão mais novo correr para casa do vizinho para jogar à bola e perguntarei ao Luís se já está, e ele responder-me-á, não sei, e faremos uma viagem insuportável em que eu chorarei.

No mesmo corredor, ouvirei repreensões acerca do atraso de hoje à tarde. O João chorará, a avó dirá, não vieste hoje de manhã e já não o viste vivo, a Liliana chorará também, e também o avô. Alguém sairá por causa da criança e eu pedirei para ver o meu pai sozinha.

No mesmo quarto, sentar-me-ei em frente a ele, vê-lo-ei morto a primeira vez e dir-lhe-ei, histérica, pode voltar para trás, pai, pode, não precisa de ir já, não precisa de ir agora. Lembrar-me-ei de quinze compressões e duas insuflações e pensarei em reanimar o meu pai e trazê-lo de volta às dores que já não se vão com morfina, agora são minhas companheiras, para lhe dizer amo-te, que acho que nunca disse, embora lhe tivesse dado um urso, sempre tratei o meu pai por você, amo-o soa tão estranho. O Luís entrará, tentará conter-me o choro com um abraço, como se contêm as crianças e eu saberei que nunca vou poder conter isto.

Nesta mesa preta, onde já esteve deitado o meu avô, estará o meu pai dentro desta caixa de madeira, com umas rendas estranhas e lençóis muito feios. Terá vestido o fato preto que talvez levasse ao meu casamento, caso eu me casasse, e deitará líquido amarelo pela boca, que é preciso limpar com algodão porque escorre pelo queixo. Eu abraçá-lo-ei e beijá-lo-ei apesar de morto, e porei muito empenho em limpar o líquido amarelo que escorre, enquanto choro, me escorro e desfaço em líquido, não amarelo, mas salgado, pelo chão. Virão muitas pessoas que conheço, muitas que não conheço, muitas chorarão, muitas não. Dormirei muito nessa noite e de manhã a caixa estará fechada, e não verei mais o meu pai.
A avó perguntar-me-á mais tarde se quero uma página impressa com uma foto feia do pai, uma oração e a data da morte e responderei que queria não ter de me lembrar dele morto.

Neste buraco no chão enterrarão o meu pai dentro de uma caixinha de madeira com lençóis feios, e eu terei dito que veria tudo e desistirei ao primeiro som da terra, uma pá de terra sobre o oco de uma caixa de madeira com o meu pai lá dentro. O meu irmão mais velho terá transportado nessa caixa o pior peso da sua vida e estará cansado. Eu, estarei mais cansada para a vida. Talvez não visite o meu pai debaixo da sua terra no dia de todos os santos, mas visitá-lo-ei às vezes à hora de almoço. E nunca esquecerei as quinze compressões, duas insuflações e o amo-te que não lhe disse.

domingo, outubro 28, 2007

Coisas boas do fim de semana

- Princesas
- Portagem
- Ainda conhecer cem pessoas diferentes na Portagem
- Safari Cola
- Ser psicóloga e não saber quem é o Osho
- Bimby
- Cabides com os nomes das princesas
- Chá «Pedro e Inês»
- Telefonemas internacionais
- The Gift, que são sempre giros

E...
«Ás vezes dizes querido, e isso é bom»
«Ai amor, às vezes chamas-me querida e eu gosto, porque me sinto mesmo»

E agora, o verdadeiro post «Se acha a sua vida sentimental uma merda, console-se com a alheia»

Há umas semanas, uma das minhas amigas mais favoritas perguntava-me, enquanto agarrava uma almofada ao colo, como é que se passa de uma relação de sexo a uma relação de compromisso.
Acho que lhe respondi que não sei, mas que pressuporia, no caso concreto, interacção mais frequente.

Outra das minhas amigas, surpreendida com presentinhos doces no banco do carro que a ia buscar, terá porventura pensado em compromissos, para lá da relação de sexo. Ou talvez não pensasse ela e só pensasse eu que não se oferecem chocolates a pessoas que só queremos levar para a cama. Desenganem-se: ainda não se sabe se a relação, já «interrompida», se mantém entre-lençóis-mas-só-às-vezes, ou se nos tornámos «só amigos», porque ele, claro, muito magoado da vida, «não quer uma relação». Isto, apesar dos chocolates.

Das memórias do fim de semana, fica-me marcada a ferro a capacidade romântica de um tipinho que passeou toda a noite um cravo no interior da sua lapela, para ofertá-lo depois ao objecto da sua afeição. Objecto de afeição deveras exigente, que logo solicitou flor diferente e de cor especial para o dia seguinte. Ora, trouxe o tipinho a flor de cor estranha e sem espinhos no dia a seguir. Perguntava-me ela se ele estaria a ter os passos certos, se seria «decente», se não seria «cabrão».

O André e a Mariana conheceram-se numa linda noite de discoteca, absolutamente alcoolizados os dois, estou em crer. Beijaram-se logo ali, na primeira noite e em fúria etílica, certamente. Foi há uns bons 3 anos e ainda hoje namoram. Não sei se o André já deu flores à Mariana: chocolates provavelmente não, porque gosta dela magra.

Isto tudo para dizer que não vos sei responder. Porque me parecem as relações sítios onde se pode chegar por muitas estradas possíveis. E, definitivamente, locais de destino com percursos de acesso que é preciso escolher e avaliar com cuidado. Ou seja, nem tomar por mais que «quero-te na minha cama» a oferta de chocolates, nem tomar para nosso um insuportável que nos quer sem comê-los, magras.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)



De qualquer modo, muito boa sorte à menina das flores...
(era impossível não se apaixonar, querida)

Nota: Podem as intervenientes solicitar a eliminação deste post. Peçam, e eu apago. ;) O itálico é, naturalmente, uma parte da Tabacaria.

sexta-feira, outubro 26, 2007

«Agora, vamos brincar aos bebés»

O Miguel faz de bebé. A Inês dá-lhe papa, põe-lhe creme, chega-lhe o bacio e dá-lhe comprimidos porque está com febre.
«Agora, o bebé és tu.»
A Inês deita-se na «cama dos bebés». Chora. «Quero leite.»
«Oh, tu eras um bebé que não fala. Deixa-me lá ver onde é que está o leite.»
E o pobre bebé crescido, vulgo eu, deitado em cima de três almofadas num tapete ranhoso, aponta o leite.
«Ah, tu também eras um bebé que não se mexia. E não bebes vinho, não bebes café, não comes chocolate. E não gostas de bananas, e o jantar é bananas.»
Criança precisa de resolver conflitos. Mas psicóloga sofre.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Sabedoria Infantil (I)

A Marta estava a desenhar motivos marítimos, com um mar, golfinhos, peixes e polvos.

Perguntou-me:
- Posso desenhar flores aqui no mar?
- Podes se quiseres, mas no mar existem algas, que são as ervas do mar.
- Olha, vou desenhar flores aqui na mesma, porque alguém podia ter apanhado e deitado as flores ao mar. E era poluição.

Impossível não rir. Ao ver-me rir, acrescentou:
- Olha, eu sei o que é a poluição porque a Rute explicou, tá bem?

terça-feira, outubro 09, 2007

Eu Hei-de Amar Uma Pedra


Foi no meio de pó que se conheceram.
Nela, ele foi talvez o murro no estômago que arruma de vez a infância num canto atrás do armário. Talvez nessa altura ela começasse a gostar de livros, talvez começasse a crescer em si aquilo que depois, cruzando a vontade das páginas impressas e um certo gosto pela filosofia, a faria comprar livros de Platão anos mais tarde, assim para ler, só por ler. Ou talvez fosse ainda uma criança pequena, entediada com as coisas impostas ou de crescidos, com pouca vontade de ler a «Aparição», que, aliás, não leu. Talvez ouvisse ainda Nirvana no rádio de cassetes preto pousado na estante do quarto, talvez começasse a ouvir algum princípio de música que, mais tarde, a fizesse gostar de jazz. Ou talvez fosse ainda uma criança pequena, ainda embalada com canções melodiosas e dulcíssimas, que se ouvem só em criança. Era, definitivamente, uma miúda triste, porque, Inês, só as pessoas tristes se tornam interessantes.
Nele, ela foi a desinquietante certeza de um desejo, de um desejo físico, que o faria querer esculpir à mão as curvas do corpo dela, misto de uma certa atracção de abismo pela ingenuidade naïf com cara de mulher. Talvez ele fosse, já nessa altura, um grande escultor, passando metade dos dias a gastar ossos, neurónios, fleuma e tédio na procura das ideias novas, e a metade restante gastando as mesmas entidades na acumulação de ideias alheias, para depois ter onde procurar. Ou talvez fosse apenas um estudante de artes ordinário, regular, ainda com muitas coisas para crescer em si. Talvez já soubesse, nessa altura, que as costas morenas do sol e o lenço preto na cabeça, à mistura com o pó de pedra desprendido dos grandes blocos, despertariam matematicamente hormonas insuspeitas nos corações femininos. Talvez já o soubesse e provavelmente já o saberia, ou talvez fosse apenas e ainda um estudante na escola da vida. Era, defintivamente, um miúdo triste, porque, Inês, só as pessoas tristes se tornam interessantes.

Reconheceram-se, juraria eu que com a facilidade com que se reconhecem entre si os abismos ou as pessoas tristes ou interessantes. Ainda assim, recompuseram-me, mantiveram-se em estátua face às intenções mútuas de se esculpirem, ela, na estranha surpresa dos seus quinze acordados, ele, no admirado espanto dos seus vinte e poucos, enamorados por alguma coisa tão nova.

Encontraram-se uns anos mais tarde. Ela, uma mulher feita, crescida, interessante e triste, depois de uns quantos sucessivos abismos que carregaram nela a certeza de que, Inês, não volto a gostar de ninguém, nunca mais, porque depois das coisas muito boas, nunca mais encontras nada, nada igual. Ele, um homem crescido, ainda mais crescido e interessante e ainda mais coberto de pó de pedra dos sucessivos e compulsivos abismos femininos que esculpira, pó de pedra esse a revesti-lo progressivamente mais, porque, e isso não mo disse, depois de tantas coisas, porque partiria ele pedra de um modo diferente com ela?

Atiraram a primeira pedra. Esculpiram-se. Limaram-se. Construíram esculturas mais clássicas. Mais modernas. Em madeira. Vidro. Barro. Arame. Esculturas em movimento. Dinâmicas. Limaram-se. Limaram arestas. Empedreniram-se. Circunscreveram-se à escultura mais simples. Apedrejaram-na. Apedrejaram-se. Limaram arestas. Empedreniram-se.

Porque, e nenhum dos dois mo disse, mas às vezes parece-me, os dois querem crer que hão-de amar uma pedra.

E, como toda a gente sabe, ou se não sabem, eu dito, o ditado é: «Eu hei-de amar uma pedra e beijar o teu coração».

domingo, outubro 07, 2007

Fim de semana Pink

A fashion victim, em todo o seu esplendor:

«Inês, eu levava este mini fatinho Versace rosa choque, baratérrimo, e guardava para daqui a uns anos, quando tivesse uma filha.»
«Eu, era um muda bebés cor de rosa padrão Burberrys, que felizmente foi vendido, mas me atormentou imenso. Também comprava, para uma filha um dia.»

Um dia depois:

«E se pedissemos uma criança emprestada para a passearmos com grifes?»

Sem comentários. :P

quinta-feira, outubro 04, 2007

Sai! Sai desse corpo que não é teu!

Aqui vai uma mensagem de aniversário só para ti.
Que contes muitos, que mantenhas milhares de manias, como «só trabalhar de coroa», apesar de agora já trabalhares a sério.
Que sejas a ruiva mais sexy da farmácia, sempre na crista da onda dos produtos novos que mereçam ser experimentados. :P
Que nunca te esqueças do que quer dizer Bombeirette, nem do que poderíamos ter feito ao pequeno Jipe.
Que gostes sempre do Porto, de Coimbra, de ananás e de coisas fashion, como pintar as unhas mais bonitas que eu conheço ou comprar trapos.
Que saibas sempre falar no nosso estúpido sotaque, saibas o que é subsumida e que nunca te entedie a conversa do «Lembras-te quando?».
Que nunca valhas só 20 rabanadas. :P (Me-do)
Que mantenhas a mesma pele branca, mesmo quando apesar dos cremes ganhares rugas.
E que nessa altura, eu ainda te conheça, eu ainda te adore, e ocupes o mesmíssimo espaço que ocupas agora na minhas gaveta das coisas muito boas. Certamente vais ocupar o mesmo espaço. Porque algumas coisas nunca se esquecem e porque (cliché pavoroso), para outras tantas coisas, como a amizade, não há longe, nem distâncias.
Parabéns, como a dizer que estou contente por exisitires.

Ps: Não conto a ninguém que fizeste 25! Fica só entre nós, até porque eu tive de ir ver ao Hi5.

«Se visses a quantidade de caixas de sapatos que esta gaja tem debaixo da cama...»

Subitamente, apercebo-me de que não cabe nem mais um par. Decido separar os sapatos de Verão, metê-los num saco e mandá-los descansar na garagem durante o Inverno. E, porque assim já sobra algum espaço, compro mais uma sandaloca de salto alto com brilhantes, que não faço ideia de quando vou usar, mas bolas, estava em saldo.

Nota: Deitando-me no sofá dinâmico, mandar os sapatos para caixas debaixo da cama quer dizer alguma coisa, não quer? :)