Esta noite discutiram. Sonoramente, alto. Discutiram o casal que (já) não são, o amor que não se têm e talvez nunca tivessem tido. Discutiram-se, a cada um e aos dois, numa cacafonia triste e ansiosa, vigorosamente.
Esta noite discutiram, como discutiram ontem, como discutirão amanhã. Esta noite, como ontem e amanhã, acabaram na cama, os corpos despidos, a raiva em movimentos rápidos entre pernas e braços e ritmos vários, entre o arranhar da carne e a dor do prazer. Esta noite, depois de se discutirem, depois de se lutarem, depois de se amarem num amor que nunca foi, perceberam, como já tinham percebido, que é fina e translúcida de tão transponível a barreira que separa o ódio do amor.
Esta manhã decides o fim, decides parar, decides hoje que não vale a pena ser-se o que nunca se foi, que há tanto que o amor não é que chega a doer.
Este mês, as contas da natureza não estavam certas nas tuas, ou estavam certas de mais e acertou-se a conta, noves fora nada.
E agora, um bocado de plástico com uma janela agora verde depois de um tempo de espera, um embatado em branco a mexer-te por entre as pernas, qualquer coisa em ti a crescer com o tempo, agora pensas.
Em como era fácil, descola-se um bocadinho encarnado de um tecido fofinho do útero da tua barriga e cai, e é só dormir e nem dói nada, e lá se vai o que em ti cresce dentro de um saco e nunca mais se pensa. E mais uma vez te ocorre a fina e suave fronteira que vai do amor ao ódio e pensas em como te leva o amor.
Hoje, depois de despida, depilada, desifectada e lavada, decidem adormecer-te com uma picada fininha e dizes adeus ao mundo a contragosto e a medo.
Hoje, algumas horas depois, voltas ao mundo em dores de barriga aberta e costurada, assustada e com sede, e é quando te lembras e perguntas, alto, se está tudo bem.
Hoje, depois de pedires com uma insistência que não te conhecias podes vê-la, feia, encarnada, excessivamente cabeluda, chorosa e cansada.
E pensas, enquanto lhe pegas e lhe colocas o indicador entre os dedos e ela o aperta, pensas convicta que se há amores para a vida, este é um. Definitivamente.
Obrigada, mãe.
Banda Sonora: Angel standing By, Jewel
sábado, abril 30, 2005
«Tenho um cavalo cansado/ Que a minha mãe me deu...»
Publicada por Luz à(s) 2:21 da manhã
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