Está frio, um frio gelado cheirando a tristeza pelo espaço do quarto. Escolhida na cama, ouves enfim passos. Chegou, sabe-te a medo. Talvez venha só e traga só mais uma noite com ele, talvez tenha trazido tatuagens arranhadas de outro corpo perto dele, talvez seja só mais um amor volátil e etílico. Distintitamente, os passos, as botas pesadas atravessando o caminho até casa, a calçada geométrica que escolheste antes de se casarem, tudo, Teresinha, tudo rigorosamente a teu gosto. E agora a chave, metida no porta-chaves em pele monogramada que lhe ofereceste no último aniversário, quando toda a família veio almoçar, rodando na fechadura.
Hoje, veio com ele qualquer estranha pessoa. Libertada a vapores, vodka, gin. Veio com ele a pessoa pior que ele pode ser e ocorre-te pensar em como amas o lado de lá da lua que ele é, enquanto cerra a mão que te cai na cara e te sabe, distintamente, a sangue.
Há qualquer coisa em vocês de estatuto modelar. A casa modelo, o último e discreto automóvel familiar potente de marca alemã. Os filhos modelo, absolutamente educados e com notas esplêndidas frequentando os almejados colégios onde o ensino é melhor. O perfumado cão, as férias na praia fora de Portugal. As amigas do chá, do bridge, os amigos do golf.
Ao pormenor, qualquer coisa de modelar em vocês dois. A gentileza das flores e das gravatas formatadas em presentes, a rotina de deixarem a mão por cima do ombro um do outro em público, o passearem de braço dado. A atribuição masculina de escolher tecnologia, a orientação dos roteiros gastronómicos familiares femininamente conduzida. E, claro, o modo como cada um diz «o meu marido», «a minha mulher» com um sorriso não demasiado esboçado nem excessivamente singelo.
Hoje, Sábado, é dia de «fazer amor», porque amanhã é Domingo. E, enquanto cerras o cabelo num apanhado em gancho de tartaruga, pões perfume atrás das orelhas e vestes a camisa de seda negra, vais repetindo a ti própria, esperando que te tão repetido se torne verdade, que o amas.
Saíu de casa e, mal bateu a porta, apertou-se-te o coração em qualquer coisa indefinida já chamada saudade. Claro, nunca ninguém pode estar sempre junto, mas na irracionalidade estranha que não te conhecias e é amor, nunca ninguém não faz sentido. Esperas então, decides sair e viver também a vida cinzenta que há para lá das muralhas do castelo que é vosso. E, quando sais, enfim, de casa, já a correr para o autocarro, atrasada tens a certeza. Que logo, mais tarde, quando se voltarem a ver vão sentir-se finalmente em casa quando se abraçarem e sabes, mesmo, que o amas.
Banda Sonora: «Better Man», Pearl Jam
Ps. Um beijinho aos porcos que cantaram isto de Espanha a Casegas (pelo menos cantam bem) e, além de me deprimirem nesse dia, me fizeram amar esta música (quase) antes de a conhecer.
sexta-feira, agosto 19, 2005
Elas
Publicada por Luz à(s) 2:18 da manhã
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2 comentários:
Desde já agradeço os beijinhos e como já disse uma vez adoro contagiar as pessoas com músicas e ainda mais quando são dos Pearl Jam.
Quanto ao texto está o rubro como n podia deixar de ser!!!
Resta dizer que há smp um "better man" por aí...até encontrares o q será realmente o "best man" pelo menos p'ra ti.
Beijinhos
parece-me tudo já um lugar tão distante... celorico, espanha, guarda, casegas, celorico... a pikena inês... o ananás... a ponte no parapente... as galinhas... e todas as músicas que nos guiaram... Better Man foi apenas uma delas. mas, linda que dói. Dissecaste-a quase como eu faria. Apenas melhor.
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