sábado, fevereiro 19, 2005

Avô... (Inestimável)

Lembro-me de ti assim... Camisa de xadrez castanha, quadrados mais ou menos grandes de um castanho mais claro... Deitado, de boina na mão, no fim de um braço paralelo ao corpo, a dormir na areia escura de um terreno arenoso. Um baloiço ao fundo, dois paus como mastros (nunca nos custou imaginar), uma tábua pequena a fazer de barco, cordas para subir mais alto... Lembro-me de ti e não ainda hoje não sei se enquanto dormias sonhavas...
Lembro-me de ti sentado naquele sofá tijolo, roendo jornais, palavras cruzadas e contas.... Seria deles que bebias as histórias que nos contavas? Seriam contas as que fazias as da vida - a imitação imperfeita, em números? Ou contarias antes o tempo que corre como a água de um ribeiro, onde caçamos enguias?
Lembro-me de ti sob uma manta azul, a passear em histórias pela tua juventude, entre macacos e boxeurs e netos que afinal também são condutores de comboio, forasteiros e saltimbancos...
E, do quarto do poster de girassol, ou do alto ravina da casa que dava sobre a praia, nasceu uma parte de mim que é hoje um pássaro.
Lembro-me de ti assim, e agora sento-me, uma folha vazia à minha frente e tanto e mais para dizer-te acerca de mim, acerca de ti, acerca da vida e de como dói, de como dói a tua (ainda quase) ausência. De como gostava de te ter dito, tantas vezes, quanto gosto de ti, de como tantas vezes disse o que talvez não quisesse, numa impaciência própria de quem ainda não aprendeu a voar direito e herdou o pássaro que há em ti também.
Lembro-me de ti, avô, mas agora és um velho velhinho numa cama de hospital, deitado magro num lençol branco à espera da conta final, olhar perdido e vago, fito num ponto vazio de uma outra realidade, que não compreendemos ou não alcançamos... Lembro-me de ti, e sinto-me estilhaçar, enquanto sorrio devagar para ti...
Sabes, avô, vais morrer... Vais morrer um dia destes, de um desses ataques de tosse, ou de tristeza, ou de cansaço da vida na sua álgebra pesada, e vamos sentir a tua falta, e vamos lembrar-nos de ti, algures entre a areia da Nazaré ou o pinhal das Paredes ou algures em nós, e no que de ti nos ficou.
Disseram-me um dia que os que morrem só morrem quando deixamos de os recordar, quando se volatilizam da química do nosso coração ou da nossa cabeça... Parece panaceia barata, profilaxia baixa, consolo reles... Parece e é, mas é também porventura o melhor que temos. E bem, pensado, avô, a única parte de ti que vai morrer é o velhinho velho e magro sobre o lençol branco da cama de hospital, esse que também amámos pela memória do que foste enquanto o pássaro que nos deste voou, também, vivo, em ti.


Banda sonora: Adagio, Albinoni

1 comentário:

Lino Gomes disse...

A serenidade de encarar a vida é típica de quem não tem contas a prestar. O teu avô deve ser dessas pessoas. Beijinhos