Todos os dias atravessa, o mesmo automóvel importado de reconhecido conforto e estabilidade, a mesma faixa de alcatrão preto, os mesmos condutores zarpando de uma para outra margem, por cima do mesmo rio entre azul e cinzento, as mesmas gaivotas gritando, a mesma ponte.
Todos os dias se senta na mesma mesa do mesmo café, o mesmo jornal, bica e bolo de arroz e passa os olhos pelas notícias estafadas do dia já cansado, controlando o caminhar dos ponteiros no relógio preto de pele.
Todos os dias, rigorosamente às nove e vinte, entra pela porta, cumprimenta a funcionária, veste a bata e se senta à secretária.
Todos os dias vê as mesmas caras, os mesmos males, as mesmas dores em gente pequena ou grande (alma ou estatura?), e escreve as mesmas letras rigorosamente contornadas nas mesmas folhas logotipadas do mesmo caderno branco, a mesma rebuscada assinatura por cima do mesmo autocolante cor-de-rosa com o seu nome.
Ao almoço, invariavelmente numa mesa da direita da parte de cima do restaurante da esquina, o mesmo senhor doutor ao atravessar a porta, o mesmo apressado e transpirado empregado, circulando ofegante por entre as mesas, o mesmo bacalhau cozido com todos todas as Terças.
Às Quintas-feiras, há reunião clínica e já apresentou um trabalho, mas só uma vez.
Todos os dias regressa pela mesma ponte e se senta no mesmo sofá de pele gasta, remastigando as notícias cansadas do mundo esgotado e o jantar deixado pela empregada, após o que se senta, direito, à secretária, debruçado sobre livros grossos com desenhos coloridos de partes da parte de dentro das pessoas.Todas as noites estuda demais, se deixa bocejar sobre as encadernações que lê, todas as manhãs amanhecidas na margem sul lhe parecem sonolentas e gastas .
Aos Sábados, visita a mãe nos Olivais. Leva-lhe às vezes flores e fica com ela um pedaço de tempo, até que o silêncio se torne insuportável e, evocando invariavelmente o trânsito e a necessidade de regressar, a deixa.
Aos Domingos, passeia até Sintra. E quando, findo o passeio, antecipado o regresso ao carrocel quotidiano na madrugada seguinte, se queda em sossego, costuma escrever.
Escreve, sim, a parte de dentro das pessoas... Sobre o que gostaria de ter sido, sobre o que o mundo pode ser ou não é.
Escreve histórias de amor.
Banda Sonora: «Deixa-me Rir», Jorge Palma
segunda-feira, maio 23, 2005
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Publicada por Luz à(s) 2:07 da manhã
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3 comentários:
Temos aqui uma voyeur, ou apenas uma opinião esterotipada de um esterotipo?...
apesar da repetiçao, apesar da mesma coisa todos os dias, não se pode dizer que a vida é má de todo, nao é? a rotina faz parte da gente, apesar de querermos sempre fugir dela...
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Fresh
Bom, admito que não li o texto todo, porque sao 3 da manha e não é facil! Vim apenas pra deixar um beijo * :D
ZagaMofo
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