sábado, dezembro 24, 2005

natal escreve-se com Letra Grande?

Estavam as ruas com ar de estação de comboio - centenas de passageiros, dezenas de terras longe, embrulhos e várias malas, diversos itinerários - mas principalmente, estavam as ruas inundadas da ridícularia do Natal, da insuportável felicidade de quem gosta da época e da insuportável infelicidade e desânimo de quem já não gosta ou nunca gostou e é obrigado a sorrir, então bom Natal, boas entradas, saúde é o que é preciso.
Apanhou-me de surpresa entre as últimas compras, na obrigação compulsiva do último presente, do pormenor esquecido do cachecol do tio António, a quem podemos dar cachecóis há 3 Natais sucessivos, sem nunca nos darmos conta.
Eu, sacos de papel na mão, embrulhos por todos os cantos dos braços, tentei fugir-lhe à babosidade habitual, ao cumprimento viscoso; mas era já tarde, e ela avançava, triunfante, o longo cabelo loiro e as pulseiras doiradas também, tilintantes, anunciando o impecável conjunto que só exibe quem passa as horas a cuidar de si.
Cumprimentou-me com a doce reverência habitual de fruta demasiado madura, o mesmo tom irritante, a mesma voz nasalada, o mesmo odor a perfume enjoando as narinas.E os paizinhos, menina, já não os vejo há tanto, desde que - imagine - éramos vizinhos porta com porta, bons tempos esses.
E eu prevendo a pergunta seguinte, a procurar escapar pelas frestas da calçada, alegando pressa, o coração já a bater e aquele sabor distinto de amargo subindo do estômago aos olhos, já a picar, tenho mesmo de ir, Mimi, que ainda tenho imensas coisas para fazer.
Ela, implacável, mas Teresinha, então diga-me só como está o João, está tudo bem, continua aquele marido exemplar dos tempos de namoro? E então a pergunta, num mudo soco falado, a mesma dor que se esconde todos os dias de manhã e só se costuma destapar à noite, e o Martim, o pequenininho, está bom?
O Martim morreu, já a correr pela calçada chorando, os embrulhos galopando comigo num amarrotar de papel, a Mimi incrédula espalhada pela calçada da rua, os meus sentimentos.
O Martim morreu aos três anos e agora é Natal.

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