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segunda-feira, janeiro 21, 2008

Devo ter deixado no passeio as madeixas loiras, as botas altas de crescida e alguns centímetros. Devo mesmo tê-las deixado, porque tenho a certeza que não fui eu que entrei, fui eu pequena, num macacão de dormir de felpo amarelo com um embelema com um coelho bordado, as mãos gordinhas fora do macacão de felpo. Eu, ao colo do meu pai, os braços cerrados com muita força à volta do pescoço dele, um carapuço por causa do frio e do cabelo molhado do banho em casa da mãe e muitíssima vergonha dos vizinhos, por poderem ver-me com seis anos e de pijama de felpo amarelo.
Devo ter deixado o casaco também na calçada em frente do lote catorze, sétimo esquerdo, um sobretudo preto grande de pessoa crescida. Devo tê-lo deixado, porque pessoas grandes não entram assim em prédios onde não moram, só porque a porta da rua está sempre aberta e para verificar se os elevadores ainda são pintados de cor de rosa clarinho.
Os elevadores ainda são cor de rosa clarinho. As caixas de correio ainda são prateadas, a porta do sétimo direito continua igualzinha (mudou o tapete) e, insustentavelmente, o prédio cheira precisamente ao que cheirava há vinte anos. Cheirará, possivelmente, ao cheiro do meu cabelo molhado da noite, ao macacão amarelo, à eau de toilette Brut do meu pai, a peixe cozido com batatas e ovo esquecido, à vizinha de nome emigrante.
Hoje, cheirou a saudades, enquanto eu descia o elevador amarelo clarinho - ou seria cor de rosa?

segunda-feira, dezembro 24, 2007

Rosas Amarelas

Nada de especial, no fundo, que o terreno em frente a minha casa é de terra escura e gravilha e na gravilha não fazem barulho os saltos altos, nada de especial, a rapariga brasileira, há rosas amarelas, o cabelo índio pela cintura, que pensará a rapariga brasileira de lhe pedir sempre rosas amarelas, na câmara, Inês, nem as botas mais pesadas fariam barulho na gravilha que separa a minha casa das rosas amarelas, nem as botas, descalça-te, Inês, por causa dos vizinhos, o pacote das rosas amarelas, vinte rosas, sempre vinte rosas, embrulhadas num cartão canelado para,

proteger a cabeça, porque a cabeça tomba e parte, os elásticos, dois elásticos, que seguram as rosas com muitas folhas e picos, muito mais folhas e picos que nas floristas que limpam as rosas e,

o meu pai, o meu pai e eu muito pequena, roubei esta rosa num quintal e trouxe para ti, filha, eu gosto muito de rosas amarelas, as filhas devem merecer flores, o copo, em casa dos pais solteiros não há jarras, o copo, a rosa pequena, uma rosa de pé arqueado, de arbusto, as roseiras não arbusto dão rosas maiores, muito menos folhas e espinhos na rosa do meu pai e o pé arqueado na água transparente do copo,

o pacote, o cartão canelado, estacionar sempre no mesmo sítio, os óculos grandes a esconder a cara, abrir o plástico e o cartão canelado, rebentar os elásticos, perco-me sempre, que pensará a rapariga brasileira de lhe pedir sempre rosas amarelas, ainda não há campa, acho que devia tratar disso, Inês, agora já não me perco e dantes perdia-me, porque já conheço as jarras de plástico branco com um bico que se espeta na terra, as jarras sempre com margaridas, só eu conheço uma rapariga brasileira que dispensa rosas amarelas em plástico e cartão canelado,

acho que podíamos levar flores à avó para o dia da mãe, vou levar rosas amarelas, era uma rosa amarela não arranjada, não quer papel, prefiro a rosa natural, não gosto dos laços e do papel, em casa das avós há tortas de ovo, muito frio, camélias cor de rosa choque e jarras de estanho onde se põem as rosas amarelas,

e então abro o pacote e nunca levo tesoura e olho para a rapariga loira de cabelo muito esticado, talvez seja uma mulher já, que beija as campas que vai arranjar num beijo rápido, mas leva vasoura para varrer, flores resistentes ao frio, nada como as rosas, que se envergonham à primeira geada, e tento cortar os pés e depois uso a boca e sabe-me, muito, a pé de rosa, e tiro folhas e picos e já não me perco, às vezes não sei bem se a campa é aquela ou a do lado, e há um pânico eminente em perder-se os mortos, os nossos mortos, e se ponho as rosas amarelas na campa de um que não seja o meu pai, já conheço as jarras, com picos para espetar na terra preta, não há campa, tenho de tratar disso, Inês,

achas que o João me consegue arranjar, mandar fazer, soluços, chorar muito, numa florista qualquer, uma coroa de rosas amarelas, eram as preferidas do teu pai, Inês, e o meu pai com o fato que levaria ao meu casamento a olhar placidamente para tudo de dentro da sua caixa de lençóis às rendas na casa mortuária, eu não me quero casar, mas ninguém me tira a ideia de que levaria aquele fato ao meu casamento, achas que o João consegue mandar fazer e a florista muito carregada com uma esponja verde circular espetada de milhares de cabeças de rosas amarelas com arame espetado, as rosas amarelas tombam,

e evidentemente, no fundo não grande coisa, que os saltos não fazem barulho na gravilha em frente de minha casa, e quando os saltos não fazem barulho é como se não andassemos de facto, não estivessemos lá, evidentemente, uma vontade quase, quase suficiente de picar o dedo de propósito nos picos, nos picos das rosas amarelas, uma vontade quase, quase mas nunca, picar os dedos de propósito nas rosas amarelas, porque a uma infecção pomos um penso, Betadine, numa dor física num dedo um penso, numa dor pequena num dedo um penso, e que fazemos, que faremos, quando nos dói a alma?

quarta-feira, novembro 28, 2007

Dos graus do transferidor ou os psicólogos não choram

Devem os psicólogos que trabalham com crianças com poucos recursos (económicos e, sobretudo, afectivos) meter o mais cedo possível na cabeça que não é sua função, quase arriscaria dizer, de todo, suprir a carência esses recursos, pelo menos de um modo directo.Idealmente, dotar-se-iam as supra citadas crianças de competências que lhes permitissem obter esses recursos. Em teoria, muito bonito. Na prática, absolutamente difícil. E isto tudo pelo facto de alguns dos «meus» meninos não receberem presentes no Natal. Presentes, agora sim, definitivamente de todo. Nem um desenho, um chupa, um bolo e, às vezes, estou em crer, nem um mimo.

Ao primeiro embate, apetece-nos virar Pai Natal, emigrar para a Lapónia e, com a ajuda dos duendes e do Rodolfo, distribuir presentinhos às «nossas» crianças. A minha solução deste ano foi esmerada: construir presentes em tecido, atribuindo a cada um dos bonecos que faremos em conjunto o nome de alguma coisa, que não um objecto, desejada pela criança. Começamos para a semana, mas por se tratar de uma tarefa razoavelmente complexa, apresentei-a esta semana, para «irem pensando». É difícil explicar a uma criança pequena o objectivo do «jogo», porque as suas primeiras ideias, salvo (difíceis) excepções são construir em tecido uma playstation de qualquer tipo (2, 3 ou portátil), um telemóvel, uma Polly ou qualquer coisa aparentada. Portanto, comecei sempre por perguntar aos «meus» meninos o que queriam no Natal. A I. respondeu-me «Quero uma coisa que não é brinquedo, nem roupas, nem nada. Quero ver o meu tio que morreu, só uma vez.»

Devolvi-lhe umas ideias mais ou menos consoladoras (ou, melhor dizendo, menos desconsoladas) acerca da morte que tenho alinhavado para me coser a mim própria, enquanto pensava, direitinho e com esta clareza e me saíam os alinhavos da boca, «Quero uma coisa que não é sapatos, nem relógios, nem livros, nem roupas, nem presentes embrulhados em papel vegetal colorido, que sempre sonhei com presentes embrulhados em papel vegetal às cores, quero uma coisa que é ver o meu pai só uma vez.» Não me parece que a I. tenha sentido a minha angústia, mas, depois de ouvido o alinhavo, perguntou-me «Nunca mais o posso ver, pois não? Era a pessoa que eu mais amava no mundo...». Eu respondi-lhe «Talvez o teu boneco possa chamar-se força para aguentar as saudades», a pensar num para mim, ela beijou-me e saíu a chorar.

Chorei também, umas lágrimas envergonhadas, fodidas, doridas e sem espaço na bochecha para caírem, porque a I. chama sempre a L., que leva um minuto a chegar e um minuto depois ali estou eu, lágrimas limpas, coração apertado, cara salgada e alegre, os psicólogos não choram.

quarta-feira, outubro 31, 2007

Dia de todos os mortos, dia dos meus

Nesta merda de edifício estará deitado o meu pai, numa cama pequena e articulada no primeiro andar. Terá vestida uma t-shirt antiga e publicitária, vagamente puída, que desde há já uns anos usa para andar por casa ou para dormir, e que será, depois de ele morrer, a única coisa dele que eu vou querer guardar, sem paciência para discutir divisões dos bens dos mortos. No quarto do meu pai estará a minha avó, mais magra do que sempre a conheci, sempre impecavelmente penteada e forte, oferecendo-lhe comida. O meu pai estará magro, aflitivamente magro e amarelo, com todos os ossos a saltarem-lhe pela pele, como querendo sair da carne, e a boca rebentada da doença, muito ferida. Estará também, no mesmo quarto, a mulher dele, sempre bem vestida e de bom ar, mas desta vez, com um bom ar triste, magoado e olheirento. Ela levá-lo-á sempre à casa de banho, porque o meu pai nunca admitirá que está a morrer e não pode andar, o que a fará pegar-lhe ao colo, às cavalitas e arrastar-se com ele até à casa de banho, como só o amor pode.

Neste corredor de clínica, falaremos baixinho do estado clínico do pai, nunca à frente dele, quando suspeito que se ouve muito bem lá dentro e quando sei que o pai sabe tão bem como nós que vai morrer, brevemente.

Nesta mesa de cabeceira estará o meu presente de último Natal ao meu pai, a única pessoa da família sem ironias para camisolas que não ele vai vestir, um urso retribuído de há muitos anos, quando eu era pequena e ele me deu um urso porque estava doente com pneumonia, porque lhe devia um urso, ainda que o meu fosse mais pequeno. Neste quarto ao lado, estarei sentada em frente a um ecrã e a um jogo que me distrai muito, e que não voltarei a jogar tão compulsivamente como nessa fase, a precisar de fugas em frente e realidades paralelas. Estarei sentada com o meu irmão e tocará o telemóvel do Luís, que, naturalmente, eu terei deixado o meu em qualquer lado com medo das más notícias. O Luís olhará para mim com uma cara difícil, eu começarei a perceber a gravidade, mas negarei e direi, ficamos mais um bocado, vamos embora, Inês, ficamos, estou a jogar com o Vasco, Inês, vamos embora.

Neste carro, verei o meu irmão mais novo correr para casa do vizinho para jogar à bola e perguntarei ao Luís se já está, e ele responder-me-á, não sei, e faremos uma viagem insuportável em que eu chorarei.

No mesmo corredor, ouvirei repreensões acerca do atraso de hoje à tarde. O João chorará, a avó dirá, não vieste hoje de manhã e já não o viste vivo, a Liliana chorará também, e também o avô. Alguém sairá por causa da criança e eu pedirei para ver o meu pai sozinha.

No mesmo quarto, sentar-me-ei em frente a ele, vê-lo-ei morto a primeira vez e dir-lhe-ei, histérica, pode voltar para trás, pai, pode, não precisa de ir já, não precisa de ir agora. Lembrar-me-ei de quinze compressões e duas insuflações e pensarei em reanimar o meu pai e trazê-lo de volta às dores que já não se vão com morfina, agora são minhas companheiras, para lhe dizer amo-te, que acho que nunca disse, embora lhe tivesse dado um urso, sempre tratei o meu pai por você, amo-o soa tão estranho. O Luís entrará, tentará conter-me o choro com um abraço, como se contêm as crianças e eu saberei que nunca vou poder conter isto.

Nesta mesa preta, onde já esteve deitado o meu avô, estará o meu pai dentro desta caixa de madeira, com umas rendas estranhas e lençóis muito feios. Terá vestido o fato preto que talvez levasse ao meu casamento, caso eu me casasse, e deitará líquido amarelo pela boca, que é preciso limpar com algodão porque escorre pelo queixo. Eu abraçá-lo-ei e beijá-lo-ei apesar de morto, e porei muito empenho em limpar o líquido amarelo que escorre, enquanto choro, me escorro e desfaço em líquido, não amarelo, mas salgado, pelo chão. Virão muitas pessoas que conheço, muitas que não conheço, muitas chorarão, muitas não. Dormirei muito nessa noite e de manhã a caixa estará fechada, e não verei mais o meu pai.
A avó perguntar-me-á mais tarde se quero uma página impressa com uma foto feia do pai, uma oração e a data da morte e responderei que queria não ter de me lembrar dele morto.

Neste buraco no chão enterrarão o meu pai dentro de uma caixinha de madeira com lençóis feios, e eu terei dito que veria tudo e desistirei ao primeiro som da terra, uma pá de terra sobre o oco de uma caixa de madeira com o meu pai lá dentro. O meu irmão mais velho terá transportado nessa caixa o pior peso da sua vida e estará cansado. Eu, estarei mais cansada para a vida. Talvez não visite o meu pai debaixo da sua terra no dia de todos os santos, mas visitá-lo-ei às vezes à hora de almoço. E nunca esquecerei as quinze compressões, duas insuflações e o amo-te que não lhe disse.