sexta-feira, dezembro 09, 2005

País do Gelo

Já se conheciam de há uns anos, do tempo em que ela usava ainda mochilas de marca francesa com ursos de design infantil, estojo, capa de livros, caderno e guarda-chuva a condizer; do tempo em que ele deixava de jogar ao pião e começava a ter, a par do acne, alguns pêlos ralos nascendo na cara.
Já se conheciam porque ela lhe dera uma chave de prata comprada na ourivesaria da esquina, única na terra, objecto de culto dos frequentadores da escola secundária, que, partida em dois, adquiria uma configuração especial e única, permitindo assim encontrar «o amor» no dono da outra parte.
Já se conheciam do tempo dos primeiros beijos, dos amores quentes da adolescência que a qualquer adulto parecem mornos e aos protagonistas aparecem como a vida, mesmo; já se conheciam porque na altura a chave do amor se perdeu e uma das partes voou para longe sem avisar a outra, a quem não restou senão um pedaço de prata inútil não tendo onde se encaixasse e um coração partido numa configuração ainda mais estranha que a da dita chave.

Reencontraram-se mais tarde, quando a segunda parte do estranho contrato voou de regresso e desde então, até esse dia, tiveram entre si, mutuamente, o estranho ar de superioridade de quem no fundo tem interesse mas aparenta andar desinteressado e altivo.
Ela, saíndo de uma estranha relação que mantivera contra todos e tudo, num estranho exercício de teimosia e obstinação, tão consoante ao seu espírito revolucionário e inconformado.
Ele, depois de algumas fugazes aventuras mais ou menos irrelevantes, uma de proporções mais ou menos devastadoras da sua auto-estima.

Conversaram, falaram do passado, das chaves perdidas e ali estiveram num amor estranho, desajeitado e desesperado de quem sabe não ter amanhã mas secretamente deseja tê-lo, quanto mais não seja por um estranho vício de forma. Ele fez-se passar por porto de abrigo («liga-me sempre que precisares»), ela simulou que não o faria «liga-me tu, se quiseres».

Ligou-me, ela, a mim.

1 comentário:

Anónimo disse...

A ti tenho uma palavra de agradecimento... Por tudo... sempre presente...OBRIGADO
Ah...vou sempre voltar a LIGAR...