quarta-feira, abril 12, 2006

Um ano

Estava deitada na cama, de manhã, o telefone pousado no parapeito a fazer de cabeceira, porque sempre gostei de acordar-me com luz de sol ao invés do candeeiro. Tocou, estranhamente, um pouco antes do esperado; nesse dia em que íamos distribuir panfletos anti-tabaco. A voz nem lhe tremeu, mas não consegui dizer nada antes; só assim, seco, curto, incisivo: o avô morreu, e qualquer coisa forte a partir-se em mim em pedaços pequenos, e qualquer coisa do que da minha infância foi a morrer contigo, e mais qualquer coisa a ficar de memória, sempre, em mim.

A estrada é grande e estou triste, banhada em dores e incapaz de parar, como de prosseguir, e é preciso conduzir; o carro, o rádio, aquela música, que em qualquer outra altura seria tonta e agora faz sentido, so when you feel like hope is gone, look inside you and be strong.

Uma porta estreita e uma mesa baixa, de tampo preto lavável, do comprimento e da largura de um corpo. Amei-te enquanto a tua carne era quente, e amo-te aqui agora, deitado, rijo, no fim da doença, a boca cheia de algodão e o mesmo esgar sarcástico, mesmo depois de morto. Consegues ver-me?

Escolha uma das duas, diz com o seu fato aprumado de cangalheiro provinciano habituado à morte, enquanto prepara os cravos vermelhos para distribuir aos convidados do enterro. Escolho a urna, relembro a viagem e a última vez que passei contigo em frente à Feira Popular, desta vez num carro preto, eu e a mãe placidamente sentadas chorando no banco da frente e tu, morto, deitado atrás.

Queria vê-lo só mais uma vez, soluço, mas entretanto o caixão rolou para dentro do forno, a avó grita, vamos embora e nunca mais te vejo, numa horas és cinza dentro da urna de há bocado, e eu nem a urna vi cheia, e só me ocorre pensar na ironia do nome do cemitério a que chamam prazeres.

Hoje, é um ano depois.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nunca tinha ido a um funeral até ter ido ao do meu avô. A ti passou 1 ano, a mim já lá vão quase 5... O teu texto fez-me reviver a minha própria experiência. Gostei do dançar das tuas palavras...