quinta-feira, setembro 20, 2007

Qualidade

A Marisa é uma menina pequenina, muito pequenina. Morena, com uns óculos pequeninos e uns olhos grandes. É o tipo de menina que reconheceríamos mesmo antes de sabermos quem é, depois do Inês, queria que visse uma menina da minha sala. Porque a prática conta e porque, ninguém mo tira da cabeça, há qualquer coisa da tristeza que contamina também o aspecto físico dos meninos tristes e que os torna também tristes a olho nú.
Tem um discurso desorganizado, saltitante, sem estruturas gerais ou grandes fios condutores. Ainda assim, parece evitar cuidadosamente assuntos ansiógenos, e procura defender a sua estrutura familiar actual.
Da história de desenvolvimento, destaca-se uma ausência quase sistemática de padrões vinculativos organizados: foi retirada a uma mãe abandónica para ver a sua guarda partilhada por avós que sempre consideraram que deviam ser os pais a cuidar dela, independentemente da qualidade de prestação de cuidados. Voltou à mãe, voltou aos avós em estado de sub-nutrição. A mãe morreu. Uma das avós mudou-se para a província. Agora, cuida da Marisa, em conjunto com uma tia. Esta avó cuida da Marisa, porque «era uma vergonha ela ir para um lar», mas continua a achar que o pai devia assumir as «suas responsabilidades».

Um estudo (ou vários), cujos nomes e autores não posso citar de cor, mas garanto que existe, procurou perceber que factores predisponentes de psicopatologia na primeira infância saturavam de tal forma uma personalidade que tornavam a resiliência impossível. De todos os factores analisados, o único factor que se revelou irreversível foi a percepção das mães de que os bebés-filhos choravam para as agredir. Os cognitivo-comportamentais também salientam a «insularidade materna» (mãe-ilha)como um factor predisponente de psicopatologia.

Ontem, estive numa formação de «Qualidade nas Respostas Sociais». HACCP, normas, afins. A formadora tinha uma mala Burberrys impecável e um relógiozinho Emporio Armani muito, muito giro. Estava grávida. Reparei que nunca, nunca, passava a mão pelo meio da barriga, por baixo da barriga, por qualquer lado da barriga, que, aliás, lhe servia de apoio para os cotovelos. No intervalo, estava a fumar.

Acho que também as mães ou quem as substitui deviam ser sujeitas a normas de qualidade. E é triste, triste, que isto não seja brincadeira.

Eu nem sequer sou fundamentalista: mas que ASAE regulamenta a qualidade das mães e seus substitutos?

1 comentário:

Anónimo disse...

Dos melhores posts de sempre...

Margarida