terça-feira, outubro 09, 2007

Eu Hei-de Amar Uma Pedra


Foi no meio de pó que se conheceram.
Nela, ele foi talvez o murro no estômago que arruma de vez a infância num canto atrás do armário. Talvez nessa altura ela começasse a gostar de livros, talvez começasse a crescer em si aquilo que depois, cruzando a vontade das páginas impressas e um certo gosto pela filosofia, a faria comprar livros de Platão anos mais tarde, assim para ler, só por ler. Ou talvez fosse ainda uma criança pequena, entediada com as coisas impostas ou de crescidos, com pouca vontade de ler a «Aparição», que, aliás, não leu. Talvez ouvisse ainda Nirvana no rádio de cassetes preto pousado na estante do quarto, talvez começasse a ouvir algum princípio de música que, mais tarde, a fizesse gostar de jazz. Ou talvez fosse ainda uma criança pequena, ainda embalada com canções melodiosas e dulcíssimas, que se ouvem só em criança. Era, definitivamente, uma miúda triste, porque, Inês, só as pessoas tristes se tornam interessantes.
Nele, ela foi a desinquietante certeza de um desejo, de um desejo físico, que o faria querer esculpir à mão as curvas do corpo dela, misto de uma certa atracção de abismo pela ingenuidade naïf com cara de mulher. Talvez ele fosse, já nessa altura, um grande escultor, passando metade dos dias a gastar ossos, neurónios, fleuma e tédio na procura das ideias novas, e a metade restante gastando as mesmas entidades na acumulação de ideias alheias, para depois ter onde procurar. Ou talvez fosse apenas um estudante de artes ordinário, regular, ainda com muitas coisas para crescer em si. Talvez já soubesse, nessa altura, que as costas morenas do sol e o lenço preto na cabeça, à mistura com o pó de pedra desprendido dos grandes blocos, despertariam matematicamente hormonas insuspeitas nos corações femininos. Talvez já o soubesse e provavelmente já o saberia, ou talvez fosse apenas e ainda um estudante na escola da vida. Era, defintivamente, um miúdo triste, porque, Inês, só as pessoas tristes se tornam interessantes.

Reconheceram-se, juraria eu que com a facilidade com que se reconhecem entre si os abismos ou as pessoas tristes ou interessantes. Ainda assim, recompuseram-me, mantiveram-se em estátua face às intenções mútuas de se esculpirem, ela, na estranha surpresa dos seus quinze acordados, ele, no admirado espanto dos seus vinte e poucos, enamorados por alguma coisa tão nova.

Encontraram-se uns anos mais tarde. Ela, uma mulher feita, crescida, interessante e triste, depois de uns quantos sucessivos abismos que carregaram nela a certeza de que, Inês, não volto a gostar de ninguém, nunca mais, porque depois das coisas muito boas, nunca mais encontras nada, nada igual. Ele, um homem crescido, ainda mais crescido e interessante e ainda mais coberto de pó de pedra dos sucessivos e compulsivos abismos femininos que esculpira, pó de pedra esse a revesti-lo progressivamente mais, porque, e isso não mo disse, depois de tantas coisas, porque partiria ele pedra de um modo diferente com ela?

Atiraram a primeira pedra. Esculpiram-se. Limaram-se. Construíram esculturas mais clássicas. Mais modernas. Em madeira. Vidro. Barro. Arame. Esculturas em movimento. Dinâmicas. Limaram-se. Limaram arestas. Empedreniram-se. Circunscreveram-se à escultura mais simples. Apedrejaram-na. Apedrejaram-se. Limaram arestas. Empedreniram-se.

Porque, e nenhum dos dois mo disse, mas às vezes parece-me, os dois querem crer que hão-de amar uma pedra.

E, como toda a gente sabe, ou se não sabem, eu dito, o ditado é: «Eu hei-de amar uma pedra e beijar o teu coração».

3 comentários:

Anónimo disse...

A Luz às vezes espuma-se é verdade, mas é um espumar cheio de inspiração...Parabéns!!! E quem não tem a sua pedra no caminho??? Para alguns já davam para construir uma calçada (portuguesa ou não) as pedras que acumlam na vida... resta-nos passar por cima delas sempre lindas e maravilhosas ;)
Beijos

Lydie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lydie disse...

Oh, ines, que nem sei o que dizer...Obrigada por ouvires como ouves e por te lembrares (nao, a tua memória nem sempre me dá vontade de te apertar o pescoco).

Raios partam o bristish weather: eu que estou literalmente para lá do céu azul (e do azul do céu, ás vezes) agora senti-me menos triste e mais interessante. O que vale é ter alguém que nao só se lembra de mim aos quinze anos como se dá ao trabalho de se espumar a escrever sobre isso. E sobre o resto, claro, tudo saido da categoria "nao sei como consegues" ;)

Saudades tuas.