terça-feira, junho 14, 2005

Cinza dos dias

Nunca ligo a televisão de manhã e nunca, nunca a tomo às refeições.
Hoje de manhã, depois de me levantar, decidi sentar-me com as pernas cruzadas da mesma maneira e a mesma tijela azul no colo por cima do sofá laranja e ligar televisão. Hoje, por qualquer insondável motivo, comecei o dia em saudades trazidas em blocos de notícias.
Estava sol anteontem e hoje choveu. Tive saudades tuas, avô, tão simultaneamente poeta, tão homem da liberdade e tão morto como eles.Senti-me como se o mundo, além de mim, te chorasse, num curta viagem de automóvel ao som de uma música pop de um rádio móvel também.

Eugénio de Andrade é um dos meus poetas favoritos. Pela simplicidade da escrita, pela música que dela salta e pelo amor e pela capacidade honesta de o (in)definir.
Adeus é um dos meus poemas preferidos. Por que me lembra pessoas e momentos especiais, porque procura ainda mostrar frutos onde outrora houve flores e agora há ramos secos. Porque os meus olhos são verdes, como o são os do poeta.

«Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.»

Perfeito...
De que cor é um «olá», de que cor é um «adeus»?

3 comentários:

Anónimo disse...

A capacidade de me comoveres através da tua escrita aumenta significativamente... Talvez por ser um tema q tb me toque particularmente. Mana, só te quero dizer aquelas pieguices do costume: love you, miss you, i'll always be here for you ****** kisses&hearts for you

P.S: Boa estadia no Algarve sua sortuda! quem me dera... quero praia, sol e verão!

Anónimo disse...

Ah, esqueci-me e foi imperdoável... Eugénio tb é um dos 'meus' poetas e por isso aqui ficam uns versos:

"São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem."

(...)

Luz disse...

Eu ADORO esta garota!