segunda-feira, dezembro 24, 2007

Rosas Amarelas

Nada de especial, no fundo, que o terreno em frente a minha casa é de terra escura e gravilha e na gravilha não fazem barulho os saltos altos, nada de especial, a rapariga brasileira, há rosas amarelas, o cabelo índio pela cintura, que pensará a rapariga brasileira de lhe pedir sempre rosas amarelas, na câmara, Inês, nem as botas mais pesadas fariam barulho na gravilha que separa a minha casa das rosas amarelas, nem as botas, descalça-te, Inês, por causa dos vizinhos, o pacote das rosas amarelas, vinte rosas, sempre vinte rosas, embrulhadas num cartão canelado para,

proteger a cabeça, porque a cabeça tomba e parte, os elásticos, dois elásticos, que seguram as rosas com muitas folhas e picos, muito mais folhas e picos que nas floristas que limpam as rosas e,

o meu pai, o meu pai e eu muito pequena, roubei esta rosa num quintal e trouxe para ti, filha, eu gosto muito de rosas amarelas, as filhas devem merecer flores, o copo, em casa dos pais solteiros não há jarras, o copo, a rosa pequena, uma rosa de pé arqueado, de arbusto, as roseiras não arbusto dão rosas maiores, muito menos folhas e espinhos na rosa do meu pai e o pé arqueado na água transparente do copo,

o pacote, o cartão canelado, estacionar sempre no mesmo sítio, os óculos grandes a esconder a cara, abrir o plástico e o cartão canelado, rebentar os elásticos, perco-me sempre, que pensará a rapariga brasileira de lhe pedir sempre rosas amarelas, ainda não há campa, acho que devia tratar disso, Inês, agora já não me perco e dantes perdia-me, porque já conheço as jarras de plástico branco com um bico que se espeta na terra, as jarras sempre com margaridas, só eu conheço uma rapariga brasileira que dispensa rosas amarelas em plástico e cartão canelado,

acho que podíamos levar flores à avó para o dia da mãe, vou levar rosas amarelas, era uma rosa amarela não arranjada, não quer papel, prefiro a rosa natural, não gosto dos laços e do papel, em casa das avós há tortas de ovo, muito frio, camélias cor de rosa choque e jarras de estanho onde se põem as rosas amarelas,

e então abro o pacote e nunca levo tesoura e olho para a rapariga loira de cabelo muito esticado, talvez seja uma mulher já, que beija as campas que vai arranjar num beijo rápido, mas leva vasoura para varrer, flores resistentes ao frio, nada como as rosas, que se envergonham à primeira geada, e tento cortar os pés e depois uso a boca e sabe-me, muito, a pé de rosa, e tiro folhas e picos e já não me perco, às vezes não sei bem se a campa é aquela ou a do lado, e há um pânico eminente em perder-se os mortos, os nossos mortos, e se ponho as rosas amarelas na campa de um que não seja o meu pai, já conheço as jarras, com picos para espetar na terra preta, não há campa, tenho de tratar disso, Inês,

achas que o João me consegue arranjar, mandar fazer, soluços, chorar muito, numa florista qualquer, uma coroa de rosas amarelas, eram as preferidas do teu pai, Inês, e o meu pai com o fato que levaria ao meu casamento a olhar placidamente para tudo de dentro da sua caixa de lençóis às rendas na casa mortuária, eu não me quero casar, mas ninguém me tira a ideia de que levaria aquele fato ao meu casamento, achas que o João consegue mandar fazer e a florista muito carregada com uma esponja verde circular espetada de milhares de cabeças de rosas amarelas com arame espetado, as rosas amarelas tombam,

e evidentemente, no fundo não grande coisa, que os saltos não fazem barulho na gravilha em frente de minha casa, e quando os saltos não fazem barulho é como se não andassemos de facto, não estivessemos lá, evidentemente, uma vontade quase, quase suficiente de picar o dedo de propósito nos picos, nos picos das rosas amarelas, uma vontade quase, quase mas nunca, picar os dedos de propósito nas rosas amarelas, porque a uma infecção pomos um penso, Betadine, numa dor física num dedo um penso, numa dor pequena num dedo um penso, e que fazemos, que faremos, quando nos dói a alma?

Sem comentários: